
Biografia
Getúlio Vargas nasceu em São Borja (RS), em 1883, e formou-se em Direito antes de ingressar na política pelo Partido Republicano Rio-Grandense. Iniciou sua carreira como deputado estadual e federal, chegando ao Ministério da Fazenda em 1926. Em 1928, assumiu o governo do Rio Grande do Sul e, em 1930, liderou a Revolução que depôs o presidente Washington Luís, tornando-se chefe do Governo Provisório. Com a Constituição de 1934, foi eleito presidente pela Assembleia Constituinte. Em 1937, instaurou o Estado Novo, regime autoritário sustentado por uma nova Carta outorgada. Vargas governou até 1945, quando foi deposto. No período seguinte, elegeu-se senador e fundou o PTB, pelo qual voltou à presidência em 1951.
Durante o primeiro período de governo (1930-1945), Vargas liderou um processo de transformação profunda do Estado brasileiro. Criou novos ministérios, instituiu direitos trabalhistas⁴ como o salário mínimo, a carteira profissional e a jornada de oito horas, e fortaleceu o papel do Estado na economia e na cultura. Combateu movimentos de oposição como a Revolução Constitucionalista de 1932, o levante comunista de 1935 e a tentativa integralista de 1938. A crise econômica provocada pela quebra de 1929 levou o governo a adotar políticas de intervenção e incentivo à industrialização. A participação na Segunda Guerra, com o envio da FEB à Itália, permitiu a modernização das Forças Armadas e a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda.
O fim da guerra trouxe a pressão popular pelo retorno da democracia. A anistia política, a convocação de uma Constituinte e o movimento queremista marcaram esse período. Deposto em 1945, Vargas voltou ao poder em 1951, desta vez pelo voto direto. Seu segundo mandato foi marcado por uma política econômica nacionalista, com destaque para a criação da Petrobras, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e o aumento expressivo do salário mínimo. Apesar de incentivar o capital estrangeiro, seu governo entrou em conflito com interesses externos, especialmente dos Estados Unidos, ao impor restrições às remessas de lucros para o exterior e ao não apoiar a guerra da Coreia.
O segundo governo de Vargas enfrentou sérias crises econômicas, inflação crescente e pressões da oposição, liderada pela UDN, pelos militares e por parte da imprensa, sobretudo através do jornalista Carlos Lacerda. O atentado da rua Toneleros, em agosto de 1954, em que morreu o major Rubens Vaz, acirrou a crise política. Isolado politicamente, Vargas suicidou-se em 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, deixando a histórica carta-testamento, na qual denunciava os interesses que, segundo ele, tentavam subjugar o povo brasileiro. Sua morte causou comoção nacional e mobilizou multidões em sua defesa, consolidando sua imagem simbólica como o “pai dos pobres”.¹
Discurso de Posse Presidencial em 1951
NO PALÁCIO TIRADENTES
"Brasileiros! Ao deixar o recinto do Congresso Nacional, onde, ao lado do ilustre Vice-Presidente da República, Sr. Café Filho, meu companheiro de campanha e de governo, prestei o compromisso legal de servir ao Brasil, às suas instituições livres e aos seus interesses supremos, o meu primeiro desejo foi dirigir-me ao povo para participar do seu contentamento e comungar das suas esperanças. Eleito a 3 de outubro como o candidato do povo, aspiro e espero governar como o Presidente do povo.
Ordenastes e eu obedeci. Deus é testemunha das minhas relutâncias íntimas em participar de uma campanha que pudesse agravar os vossos sofrimentos e fomentar discórdias e animosidades entre brasileiros.
Não temia os riscos, os ônus e as vicissitudes da luta política, nem me enfraqueciam o ânimo as ameaças e as provocações diretas ou veladas. Mesmo assim, não me decidi a disputar o pleito sem antes esgotar todos os recursos de conciliação e harmonia das forças políticas. O insucesso dos meus esforços e o malogro das minhas esperanças não abriram outro horizonte que não fosse o da luta, que procuramos manter em termos de isenção e elevação. Os profetas de calamidades, como aves agoureiras, andaram anunciando a aproximação das horas de cataclisma. Outros, como falsas pastoras, pretendiam assumir uma espécie de curatela da opinião popular porque ainda não estávamos amadurecidos e preparados para os prélios cívicos e os embates ideológicos que fortalecem e vivificam o exercício e a prática da democracia.
Os seus prognósticos lúgubres e as suas previsões funestas não se confirmaram. A eleição de 3 de outubro desmentiu os seus presságios e também os argumentos engendrados que apenas escondiam os receios duma competição livre que permitisse ao povo exprimir a escolha e a preferência. A ordem não foi perturbada. Os poderes públicos permaneceram nos limites constitucionais e não precisaram extravasar para os recursos das medidas de exceção. A Nação não interrompeu o ritmo dos seus trabalhos e atividades. O Governo Federal, os órgãos da magistratura e as Forças Armadas merecem louvores pela sua contribuição para a lisura, a liberdade e a tranquilidade da propaganda e do pleito. Os profissionais da desordem, os conspiradores impenitentes e os inimigos da paz social não encontraram ambiente propício para a aventura, o terror, a violência ou a demagogia. O povo brasileiro ofereceu um exemplo vivo de maturidade política, cultura cívica e aprimoramento coletivo. Não reagiu às provocações nem se deixou emaranhar nas ciladas da traição. Não se deixou vencer pelo engodo das promessas ou pelas tentações da corrupção. Não perdeu por um só momento a calma, a confiança, as virtudes da fé e a convicção serena de que o voto depositado nas urnas seria contado e respeitado. Não valeriam contra a sua vontade nem prevaleceriam contra a sua decisão os sofismas, as maquinações, as intrujices, as chicanas e as rabulices jurídicas dos que andaram tentando fraudar, perverter a limpidez e a legitimidade dos mandatos oriundos de uma eleição reconhecida e proclamada como a mais livre e honesta de nossa história republicana. Aos partidos, aliados ou adversários, e aos ilustres candidatos que disputaram comigo os sufrágios e as preferências do povo, quero deixar registrado o testemunho da minha admiração e respeito pela elevação, dignidade e cortesia com que se conduziram, honrando os padrões e as conquistas da nossa civilização política.
A eleição de 3 de outubro não representa para mim apenas a designação da estima pública ou o coroamento duma carreira devotada aos interesses, às aspirações e ao serviço da comunidade nacional e das populações ignoradas e esquecidas. Eu a recolhi como um julgamento e com a força dum veredicto irrecorrível. Ao deixar o governo, o apodo, as invectivas e a calúnia fizeram de mim o objeto e a vítima do ódio e da injustiça. Malsinaram atos, intenções, propósitos e desfiguraram a verdade ao sabor das suas prevenções e malignidades. Nunca ditei uma palavra de amargor e sufoquei sempre as penas e as mágoas que me causavam a fúria e a impiedade das suas setas envenenadas. As mensagens de solidariedade, as palavras de conforto, as numerosas provas de gratidão e bondade, partidas da gente anônima e obscura e que chegaram diariamente ao meu retiro, tiveram o efeito dum bálsamo consolador e, ao mesmo tempo, reavivaram a crença nas virtudes do povo brasileiro e no dever que me competia de continuar pugnando pelos seus direitos e pelas suas causas.
A minha candidatura não nasceu, por isso, das injunções da política ou das combinações dos partidos. Ela veio diretamente do povo, dos seus apelos e dos seus clamores. Por isso vos escolhi, intrépido e valoroso povo carioca, para serdes o intérprete da minha imensa gratidão. Serei fiel ao mandato, às responsabilidades e aos deveres que me impusestes numa alentadora renovação de apoio e confiança.
Não venho semear ilusões, nem deveis esperar de mim os prodígios e os milagres dum messianismo retardatário. Não vos aceno com a idade da plenitude e da abundância como um fabricante de sortilégios. Não vos quero enganar com projetos ambiciosos e programas grandiosos, imaginativos e irrealizáveis. Tendes direito a uma vida melhor e a uma participação gradual e equitativa nos produtos do trabalho, na comunhão da riqueza e nos frutos e benefícios do progresso, do conforto e das amenidades da existência. A todos, sem exceções odiosas e discriminações irritantes, devem ser assegurados a igualdade das oportunidades, o acesso das facilidades educacionais, a participação efetiva nos conselhos da administração pública, a remuneração compensadora do trabalho, os cuidados e os desvelos do Estado nas horas de infortúnio, a segurança econômica, o bem-estar coletivo e a justiça social.
A economia popular, fruto do trabalho, será defendida e protegida. É ao próprio povo, em primeiro lugar, que cabe a vigilância do mais sagrado dos direitos, que é o direito da necessidade. Os especuladores dos lucros ilícitos, os exploradores da pobreza, os mercadores da miséria alheia ficam advertidos de que a lei não os cerca de imunidades nem a justiça popular reconhece os seus foros de impunidade.
O Governo não é uma entidade abstrata, um instrumento de coerção ou uma força extrínseca da comunidade nacional. Não é um agente de partidos, grupos, classes ou interesses. É a própria imagem refletida da Pátria na soma das suas aspirações e no conjunto das suas afinidades e lealdades. É a emanação do povo e, como tal, o servo da sua vontade, o provedor das suas necessidades, a força humanizada e sensível que preside às relações e ao desenvolvimento de sua vida social no sentido da cooperação e da harmonia das classes e dos interesses.
Brasileiros!
A jornada eleitoral foi encerrada e podeis estar orgulhosos da página de glória com que enriquecestes os anais da nossa vida política. Precisamos agora amortecer as paixões, esquecer os dissabores, aplacar os espíritos e apagar as cicatrizes da batalha. Temos diante de nós uma imensa tarefa de recuperação e consolidação a realizar e, para ela, sem exclusões partidárias, convoco a boa vontade, a inteligência e o patriotismo dos brasileiros. Estou certo da vossa ajuda e conto com a vossa cooperação porque assim continuaremos servindo não ao efêmero dum governo, mas à perenidade, à perpetuidade e à grandeza da Nação Brasileira."
Discurso pronunciado ao ser empossado, perante o Congresso Nacional. 31.1.51²
Carta Testamento
Getúlio Vargas
Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.
Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas³
Fontes:
¹ Arquivo Nacional - Centro de Informação de Acervos dos Presidentes da República.
² Presidência da República/Casa Civil/Secretaria de Administração/Diretoria de Gestão de Pessoas/Coordenação – Geral de Documentação e Informação/Coordenação de Biblioteca/Biblioteca da Presidência da República
³ Carta Testamento: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/getulio-vargas/carta-testamento-de-getulio-vargas
⁴ https://www.congressoemfoco.com.br/noticia/108144/ha-82-anos-vargas-criava-a-clt-sem-o-congresso-e-inaugurava-nova-era
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